Chef Marcos Wandebaster: “Sempre que faço um bolo, um doce, me sinto conectado às minhas mais velhas e minhas ancestrais”

Foto: Arquivo pessoal

Chef confeiteiro e professor, Marcos Wandebaster tem na sua ancestralidade os saberes que guiam o seu trabalho. Uma trajetória que costura muitos pedacinhos de experiência. Ele estudou Nutrição, Design de Moda e até Antropologia, mas foi a Gastronomia que o abraçou de vez.

Ela não foi sua primeira opção, por não ser enxergada como um lugar de pertencimento, mas como uma corda invisível do destino, ela se encaixou na sua vida e, hoje, o profissional tem a Gastronomia como expressão e criação.

Na sua jornada, sua tia Luciêne, em especial, foi sua primeira professora e teve papel importante nos ensinamentos e em momentos de conquistas, como a participação dela e de Marcos no reality Que Seja Doce, décima temporada, em que a dupla ganhou o prêmio de Confeiteiro Mais Doce, no episódio 2.

Um chef que se reinventa. Criador da Cumbuca Doçaria Brasileira, o chef traz na marca suas raízes. O nome é em alusão aos momentos em que sua tia Luciêne “ensinava a fazer bolos utilizando uma cumbuca e uma colher de pau”, conta.

Ao portal Sabores da Cidade, o chef detalhou sua trajetória, as dúvidas e certezas que foi encontrando ao longo do caminho, além de contar mais sobre suas várias versões, que compreendem a confeitaria, o ensino, o desenho, a escrita e, até mesmo, o ballet, que estudou por quase de 10 anos. Confira a entrevista completa abaixo.

Sabores da Cidade: Marcos, como a gastronomia entrou na sua vida? Sempre foi a carreira dos seus sonhos?

Marcos Wandebaster: A verdade é que venho de uma família de mulheres negras cozinheiras. Minha tia, minha avô, minha bisavó, minha tataravó… contudo, por questões escravistas, estamos falando de mulheres negras cozinheiras numa realidade histórica de escravidão, nunca olhei para a cozinha como uma profissão a ser seguida.

Amava estar na cozinha fazendo bolos, doces e refeições com minha tia Luciêne, mas acreditava que esse amor pelo ofício não poderia ser levado ao âmbito profissional. Não via em nenhum lugar chefs pâtissières negros.

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Na verdade, quando via alguma pessoa com meu tom de pele e minhas características físicas numa cozinha, com unanimidade, era num lugar de subserviência, e isso sempre me assustou.

Como primeira opção de curso a título superior, decidi estudar Nutrição e, ainda no primeiro semestre, passei em primeiro lugar para ser bolsista no laboratório de Neuropsicofarmacologia no departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Essa experiência foi fundamental para que eu me aprofundasse nos conhecimentos químicos, biológicos, bioquímicos e fisiológicos dos alimentos.

Alguns anos depois, comecei a estudar Design de Moda, pois desenhava desde criança, e foi nessa experiência que adquiri os conhecimentos de fôrma e cor, luz e sombra, fotografia, criação e posicionamento de marca, desenvolvimento de produtos e editoriais.

Em busca de mais conhecimentos, iniciei o curso de humanidades e antropologia na UNILAB, e foi aí onde a chave virou. Compreendi que todos esses conhecimentos que vinha adquirindo no decorrer dos anos formaram as bases sólidas para que eu pudesse abraçar a Confeitaria como profissão.

Juntas, cada disciplina de cada curso que fiz alicerçam meu trabalho como chef, como consultor, como professor e escritor. Eu sei, não foi um caminho linear, mas é justamente essa multidisciplinaridade que marca minha posição profissional no mercado!

Por que escolheu trabalhar na área da confeitaria?

Como cresci ao lado de tia Luciêne, sempre ajudando-a a fazer bolos e doces pelo puro sentimento de levar felicidade às pessoas, meu amor pela confeiteira surgiu naturalmente, me levando a fazer meu primeiro bolo confeitado por encomenda quando eu ainda tinha 13 anos de idade.

Amo a Cozinha Quente, mas a confeitaria mantém vivo em mim, o mesmo sentimento que tinha quando criança. Sempre que faço um bolo, um doce, uma sobremesa, me sinto conectado às minhas mais velhas e minhas ancestrais. Me faz sentir que sou parte delas e que tenho um legado de família a continuar.

Foto: Arquivo pessoal

Como tem sido ministrar aulas? O que destaca dessa experiência?

Ser professor me traz o sentimento de que meu trabalho está sendo feito honrando aos que vieram antes de mim e contribuindo na formação de novos profissionais da confeitaria no mercado. Como abordo a confeitaria a partir de uma perspectiva científica, sobretudo através da compreensão química, biológica e física, sempre me deparo com uma resistência à aproximação desses conhecimentos.

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Por séculos a cozinha foi abordada como algo exclusivamente empírico, o que nos faz entender a resistência à uma nova compreensão que agregue conhecimento aos saberes que já carregamos de forma empírica e afetiva.

Entretanto, há estudantes que buscam conhecimentos além das receitas prontas, que compreendem que tudo que acontece numa cozinha é ciência e que almejam esse conhecimento. Essa realidade me impulsionou a escrever meu primeiro livro, um projeto que vem sendo trabalhado há três anos e meio.

No livro, abordo a química, a biologia, a física, a matemática, a história, a antropologia, a sociologia e o contexto político-econômico que envolve o ofício de se fazer bolos. Costumo dizer que estou escrevendo o livro que gostaria de ter lido desde o começo da minha carreira.

Contando com a apresentação de Vanessa Moreira, coordenadora de Cultura Alimentar e Pesquisadora da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, o livro, que está sendo concluído nesse momento, surge como fonte de pesquisa para quem busca se apropriar do conhecimento científico da profissão.

Ainda há muito o que fazer pela educação e, sendo professor, tenho verdadeiro orgulho em contribuir nessa missão. Tia Luciêne, professora de língua portuguesa há mais de 60 anos, me inspira todos os dias a seguir nesse caminho!

Sobre seu processo criativo, como você se inspira para criar novos sabores de bolos?

Minhas inspirações sempre surgem dos sabores que experimento em cada lugar que tenho a oportunidade de conhecer. Sou completamente fascinado por visitar as produções agrícolas e aprender com quem cuida da terra. Gosto de apreciar os sabores antes de tudo, ao seu natural, como a natureza produz.

Experimentar um maracujá da Caatinga direto do pé, colher cajás maduras ainda nas cajazeiras, provar o cacau antes de ser transformado em chocolate, sentir a acidez e a doçura do mel de Jandaíra fresquinho da colmeia.

Esses movimentos simbióticos entre comidas e pessoas, culturas alimentares e formas de produção, são meus principais combustíveis de criação. Sou completamente apaixonado.

Quais as suas referências na confeitaria e que te inspiram?

Primeiramente, tia Luciêne. Minha maior referência na cozinha e no respeito pelos alimentos. Cozinheira e doceira de mão cheia, sempre me ensinou a cultivar, cuidar e utilizar os insumos da terra. Joyce Galvão, com seu olhar científico e afetuoso à Doçaria brasileira, é outra grande inspiração para o meu trabalho. Na minha lista também fazem parte nomes como Will Goldfarb, Jordi Roca e Nancy Silverton.

Como surgiu a ideia de criar o Cumbuca Doçaria? Por que esse nome?

Depois de trabalhar por anos em confeitarias independentes, confeitarias de empórios, confeitarias de buffets e confeitarias de restaurantes, senti a necessidade de construir algo que subvertesse a lógica de desempacotar e fazer de forma mecânica.

Precisava voltar ao campo e as plantações, a conversar com produtoras/es, varejistas e clientes e apresenta-los uma confeitaria que valorizasse nossos insumos, nossas conhecimentos e nossas culturas alimentares a partir de uma ótica científica e livre de ultraprocessados.

O nome CUMBUCA – Doçaria Brasileira remete a minha história na confeitaria. É uma homenagem às horas mágicas em que tia Luciêne me ensinava a fazer bolos utilizando uma cumbuca e uma colher de pau.

Para quem ainda não conhece, como você descreve da Cumbuca? Qual a proposta da casa?

Costumo descrever a CUMBUCA – Doçaria Brasileira como um lugar que proporciona uma experiência gastronômica de pertencimento. Nossos bolos, tortas, doces e sobremesas partem de nossa cultura alimentar numa fusão de técnicas nacionais e internacionais amparadas por conhecimentos científicos, utilizando apenas apenas comida de verdade e orgânica.

Nesse movimento, construo um cardápio provocativo que muda de acordo com as frutas da estação.
Um exemplo disso é nosso bolo “Inxirido” de frutas vermelhas. Os bolos levam os nomes de expressões linguísticas que usamos como adjetivos no Ceará, que a depender da época do ano, pode levar além do morango, a acerola, a pitanga ou o jambo.

As pessoas quando comem simplesmente amam, e algumas até ficam incrédulas que estão amando comer um bolo com acerola, pitanga e jambo.

Dessa forma, consigo ativar a percepção sobre o potencial de nossas frutas, especiarias, méis… como sabores dignos dos recheios e coberturas dos bolos que ocupam o centro da mesa principal.

O que destaca da sua vitória no episódio 2 da 10 ª temporada do Que Seja Doce?

Participar e ganhar o Que Seja Doce foi um dos momentos mais incríveis da minha vida. Em rede nacional, pude agradecer à tia Luciêne por tudo que ela fez, faz e significa na minha vida pessoal e profissional. Competi com participantes de altíssimo nível técnico, o que elevou ainda mais o sentimento de vitória.

No programa, apresentei minhas raízes cearenses com muita técnica, explorando doces e sabores que fazem parte de nossas culturas alimentares, o que arrancou muitos elogios das/os juradas/os e me fez trazer para o Ceará o título de Confeiteiro Mais Doce.

Foto: Adalberto de Melo Pygmeu

Essa experiência me mostrou que, apesar dos obstáculos, consegui construir a identidade do meu trabalho e mostrar que nossos sabores cearenses podem e devem estar de iguais para iguais com relação às gastronomias internacionais.

Ao chegar no Ceará, fui homenageado na Câmara Municipal da cidade de Guaiúba, onde cresci, em sessão solene, ganhando o título de um dos melhores chefs de confeitaria do país.

Também fui homenageado em duas matérias no Guia Black Chefs, o maior guia de chefs negros do Brasil e no Site Mundo Negro, sendo destaque também em jornais locais como Diário do Nordeste e O Estado. Sinto extremo orgulho em ser um porta voz dos sabores brasileiros na Confeitaria.

Quem é o Marcos fora da cozinha? O que gosta de fazer e o que te representa?

Além de fouets, batedeiras e panelas, amo manejar pincéis de aquarela e grafites em ilustrações. Como mencionei, ilustro desde criança, e ao estudar Design de Moda pude desenvolver essas habilidades.

Como bom canceriano, amo viajar e curtir momentos em família, sempre ao lado do Olivio, meu namorado e companheiro de vida, da minha mãe e minhas tias, dos meus primos e amigos.
Outras duas paixões fazem parte da minha vida: a literatura e o ballet clássico.

Na literatura, sou tocado sensivelmente pela escrita de autoras e autores como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Chimamanda Ngozi Adichie, Bell Hooks, Maya Angelou, James Baldwin…

Com relação ao ballet clássico, iniciei na adolescência, aos 15 anos, e entre idas e vindas fiz por quase 10 anos. Hoje não faço mais ballet clássico numa escola de dança, mas o aprendizado que tive nessa experiência me permite ter uma rigorosa rotina de alongamento, que além de me fazer relaxar, prepara meu corpo para o intenso trabalho na cozinha.

Por último, qual conselho você dá para quem está iniciando na gastronomia e tem o desejo de ter o seu próprio negócio?

Primeiramente entender que tudo, absolutamente tudo que acontece numa cozinha é ciência. A partir daí, ficam mais visíveis os caminhos à serem desbravados. Quanto mais proximidade com a química, a biologia, a física e a matemática menos perrengues passamos.

Quanto mais proximidade com a história, a antropologia, a sociologia e a filosofia, melhores preparados para fazer a diferença ficamos. Por isso, insisto no pensamento de que nunca devemos parar de estudar e pesquisar.

Como profissionais da cozinha no atual período histórico temos o dever de honrar as gerações que nos antecederam e preparar o terreno às futuras, e essas ações tornam-se verdadeiramente possíveis quando estamos alinhados com a perspectiva progressista de conhecimento.

Outro ponto fundamental é o networking. Ao estreitarmos nossas redes de contatos profissionais, mais oportunidades vão surgindo, e quando temos uma boa base de conhecimento, melhor preparadas/os ficamos para cada desafio do mercado.

E como ‘negócio’, desde o início é importante buscar ajuda profissional no que diz respeito a parte jurídica e financeira do empreendimento.

Muita gente boa na cozinha acaba pondo em risco seus negócios por não darem a devida atenção a parte burocrática de ser CNPJ. Contar com aconselhamentos e direcionamentos profissionais faz toda a diferença para o sucesso de uma empresa!

Pitadas de Marcos

O que não pode faltar na sua cozinha?
Frutas frescas e orgânicas da estação.

Qual receita de família é marcante para você? De quem é?
O bolo de chocolate com brigadeiro da tia Zirene. Esse bolo me marcou tanto que ao longo dos anos fui aperfeiçoando-o e hoje está no livro que vou lançar.

Uma música para ouvir cozinhando?
Músicas do gênero Rhythm and Blues!

Livro predileto? Não precisa ser de gastronomia.
Não consigo escolher apenas um… Mas posso citar alguns como: Amerinacah – Chimamanda Ngozi Adichie; Eu sei por que o pássaro canta na gaiola – Maya Angelou; e Olhos D’água – Conceição Evaristo.

Para você, quais os sabores da cidade de Fortaleza?
Baião de dois, carne do sol com macaxeira frita, doce de caju, castanha de caju torrada e bolo mole.

Um lugar em Fortaleza fora da cozinha?
Tenho um xodó especial pela Praia do Futuro.

Serviço

Instagram: @cumbucadocariabrasiliera

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