A notícia é maravilhosa, mas a forma como foi abordada e divulgada na mídia cearense gerou um entendimento errado nas redes sociais
“Unesco declara cuscuz Patrimônio Imaterial da Humanidade” foi o título de algumas matérias na última quarta-feira (16/12). É para comemorar? Com certeza. Afinal, é o reconhecimento de mais uma cultura alimentar que fica registrado. Aliás, nem é o cuscuz em si, mas principalmente os saberes e práticas desde a produção até consumo em torno dele. A declaração foi decorrente da requisição feita conjuntamente entre Argélia, Marrocos, Mauritânia e Tunísia. O Comitê de Patrimônio da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura afirmou: “Essa inscrição conjunta de um patrimônio compartilhado ilustra até que ponto o patrimônio cultural imaterial pode ser um assunto sobre o qual os Estados se reúnem e cooperam (…) aproximando-os por meio das práticas e saberes que têm em comum”.
E por que os cearenses comemoram? Não sei por qual motivo, o jornal O Povo publicou nas redes sociais e no seu site a informação correta, no entanto, utilizou a imagem do cuscuz feito com flocos de milho, gerando um entendimento errado sobre o que foi declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade. Apesar de maravilhoso, ele não está contemplado no registro porque a solicitação feita pelos países associados é referente ao que por aqui chamamos de Couscous (marroquino), feito de sêmola de trigo. É claro que nosso cuscuz foi adaptado desse preparo e feito com milho, ingrediente disponível na época da colonização.
Pesquisadores afirmam que o cuscuz chegou ao Brasil no início da colonização portuguesa, bem como foi reconhecido e aprimorado pelos africanos trazidos para cá. Em “História da Alimentação no Brasil”, Câmara Cascudo escreveu: “Certo é que portugueses e africanos vieram para o Brasil conhecendo o cuscuz. Aqui é que ele se fez de milho e molhou-se no leite de coco”. E não é só isso, né? Em todo território brasileiro, o cuscuz tem diferentes formas de preparo, acompanhamentos, ingredientes e ocasiões.
Só para ficar bem claro: nosso cuscuz brasileiro não está contemplado no registro noticiado. No entanto, vale a sugestão para que as entidades competentes possam fazer as devidas solicitações e que nossas comidas e seus modos de fazer sejam reconhecidas, resguardadas, conservadas e valorizadas.
No Brasil, temos alguns reconhecimentos na área de cultura alimentar pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e é possível observar que o reconhecimento é sempre direcionado ao que está relacionado com as comidas, pratos, preparos ou ingredientes. Dá uma olhada na lista:
Ofício das Baianas de Acarajé – 14/01/2005
Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do Salitre/ Alto Paranaíba – 13/06/2008
Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro – 05/11/2010
Produção Tradicional e Práticas Socioculturais Associadas à Cajuína no Piauí – 15/05/2014
Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas – 15/05/2018
Sistema Agrícola Tradicional de Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira – 20/09/2018
O reconhecimento do cuscuz
Segundo matéria publicada no portal da CNN Brasil, o argumento de inscrição destaca que o cuscuz (sêmola de trigo) consumido desde a Idade Média em vários povos e todos têm uma verdade em comum: “O melhor cuscuz é o da minha mãe”. O que marca uma tradição geracional, o consumo do prato faz parte de toda reunião de família, seja uma grande comemoração ou no dia a dia. Por estar presente em vários países, as receitas variam de acordo com os lugares, aceitando acompanhamentos disponíveis na região em que é feito, seja um deserto, uma ilha ou uma montanha. O próprio preparo do cuscuz, desde o momento em que a sêmola é moída já faz parte da tradição dessas culturas. As mulheres desempenham um papel fundamental não apenas preparando e consumindo o prato, mas para perpetuar os valores simbólicos que tem, através da transmissão oral e pela observação e imitação da prática.
“É também uma questão de destreza e gestos artesanais: artesãos que fazem os utensílios do cuscuz, agricultores que produzem os cereais, moleiros que os transformam em semolina, comerciantes e, mais recentemente, proprietários de hotéis, envolve todo um tecido social”, afirma um trecho do texto de solicitação do reconhecimento.