Benedita: a cerveja dos monges

Por Carol Zilles
Especial para o Sabores da Cidade

Carol Zilles com a Benedita – foto: Roberto Kwengwe

Um dos grandes mistérios da humanidade, durante milênios, certamente foi esse: como uma mistura de água com uma bela porção de grãos de cevada colhidos quando estão prestes a germinar, se forem armazenados em recipiente aberto em um dia de temperatura amena na Europa, pode se transformar, depois de alguns dias, em um líquido colorido cheio de bolhas de ar, sabor intenso, que provoca uma sensação de felicidade e relaxamento e que, em maiores quantidades, sobe à cabeça e bagunça todos os nossos sentidos? E que ainda alimenta e evita doenças infecciosas? Só pode ser milagre!

Hoje sabemos que o milagre é realizado pela levedura, um fungo microscópico que consome o açúcar proveniente do amido da cevada e o transforma em vários compostos, como álcool e gás carbônico, em um processo chamado de fermentação. Esse mesmo processo ocorre na fabricação do vinho, mas nesse caso o açúcar que a levedura consome vem da frutose da uva. Até que se descobrisse que esses seres minúsculos existem, no fim do século XVII, e que eram responsáveis pelo processo de fermentação, em meados do século XIX, essa alquimia era atribuída por muitos ao dedo de Deus.

Cerveja e religião estão conectadas desde sempre. Os primeiros registros escritos de uma receita de cerveja de que temos notícia é uma ode à deusa suméria Ninkasi, de 1.800 a.C.. O nome cerveja vem de Ceres, a deusa da agricultura dos romanos. Na religião católica, St. Arnold, que viveu nos anos 600, é o padroeiro da bebida, e atribui-se a ele a seguinte frase: “Do suor do Homem e do amor de Deus veio a cerveja ao mundo”.

Desde o início da Idade Média, especialmente na região em que hoje estão Bélgica, Holanda e França, há monastérios que produzem cerveja, além de pão, queijo, geleias e outros produtos artesanais, tanto para consumo próprio como para pagar as despesas do mosteiro. Conhecida como “pão líquido”, a cerveja garante a boa saúde dos monges, especialmente nos longos períodos de jejum, além de ser oferecida aos peregrinos e visitantes. A cerveja mais antiga do mundo ainda hoje em atividade é a Weihenstephan, criada em um mosteiro que tem este mesmo nome, na Alemanha, em 1040.

Uma Ordem religiosa específica se destaca na produção de cervejas: é a Ordem Trapista, formada por monges e monjas beneditinos cenobitas, ou seja, devotos de São Bento que vivem em comunidade sob o lema Ora et Labora. A Ordem foi fundada no século XVII no mosteiro Nôtre-Dame de la Trappe, na França, e hoje conta com 169 mosteiros em todo o mundo.
Ao longo do tempo, os produtos oriundos dos mosteiros trapistas ficaram tão famosos e requisitados que, em 1997, oito deles se juntaram para criar a International Trappist Association – ITA (Associação Trapista Internacional), a fim de proteger o termo trapista de aproveitadores, bem como estabelecer critérios para definir quem pode ou não vender seus produtos como autênticos. Para isso, criaram o selo Authentic Trappist Product, uma espécie de certificado de origem que, no caso da cerveja, garante que ela foi produzida dentro do mosteiro trapista, pelos monges ou sob a supervisão direta deles e que não tem fins lucrativos – o faturamento com as vendas deve ser utilizado para custear a vida no mosteiro e, caso haja sobra, ela deve ser empregada exclusivamente em ações de caridade.

Atualmente, 21 monastérios fazem parte da Associação Trapista Internacional, que além de emitir o selo, apoia e monitora a produção de seus associados com objetivo de garantir padrões de excelência. Desses 21, 14 produzem cerveja, sendo 6 na Bélgica, 2 na Holanda e 1 em cada país a seguir: Áustria, Itália, Reino Unido, França, Espanha e Estados Unidos (o único fora da Europa). As marcas autenticamente trapistas mais conhecidas são La Trappe, Chimay, Westmalle, Ache e Rochefort, que podem ser encontradas facilmente no Brasil nas principais redes de supermercados e em lojas especializadas.
Depois da criação do selo, convencionou-se que quando qualquer outra cervejaria, comercial ou não, em qualquer lugar do mundo, reproduzir algum dos estilos de cerveja que se consagrou como trapista, elas podem usar como referência o termo “cerveja tipo Abadia”.

Os estilos de cerveja trapistas fazem parte da tradição da Escola Belga, porque foram desenvolvidos e se consolidaram ao longo de muito tempo naquela região. Existem outras escolas cervejeiras, como a Alemã, a Inglesa e a Americana, que da mesma forma agrupam estilos que evoluíram a partir de insumos, técnicas, condições sociais e políticas e preferências de consumo regionais. Além de representar uma região com longa e forte tradição cervejeira, cada Escola apresenta características muito distintivas e reconhecíveis para quem estuda cerveja.

Alguns dos mais famosos estilos trapistas são Dubbel, Tripel e Dark Strong Ale. Por serem bastante alcoólicos, encorpados e complexos, eles são muito aclamados por quem gosta de cerveja, mas não são consumidos em grande quantidade e frequência pelos monges, que precisam se manter sóbrios para trabalhar. Acabaram se tornando produto de exportação e, por isso, são mais vendidos e reconhecidos internacionalmente.

Em outra direção, há um estilo muito pouco conhecido do público, porque é justamente o que os monges produzem para consumo próprio, por seu baixo teor alcóolico: a Patersbier, “cerveja do pai” em holandês, também conhecida como Trappist Single. Normalmente ele é feito com o que sobra de açúcar no malte utilizado na produção de uma cerveja mais potente. Cervejas desse estilo são raramente encontradas fora dos monastérios e por isso são alvo certo dos aficionados por cerveja ao visitar a Bélgica.

Benedita – foto: Izakeline Ribeiro

Foi justamente em uma viagem à Bélgica em 2015, em visita à cervejaria Westvleteren, pertencente ao mosteiro trapista St. Sixtus, que o mestre-cervejeiro e cofundador da Cervejaria Capitosa Fernando Chaves degustou uma autêntica Patersbier. A Westvleteren Blond emocionou o paladar do Fernando e reproduzir o estilo virou quase uma obsessão.
Seis anos depois dessa experiência tão especial e depois de construir a própria cervejaria, em setembro de 2021 finalmente o

Fernando lança sua versão da Patersbier: a Capitosa Benedita, que no nome homenageia os monges beneditinos, criadores e principais consumidores do estilo. Uma cerveja com 5,5% de álcool, de cor amarelo palha, seca, com amargor presente e notas frutadas e condimentadas provenientes da levedura belga. A Capitosa Benedita é vendida em barril de chope de 20 e 30 litros, garrafa de 500ml e lata de 350ml.

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